A cozinheira Juliana Luvizaro , 33, se percebeu lésbica
aos 22 anos, quando uma amiga de faculdade a beijou. Como sexualidade
não era assunto debatido em sua casa, e nem na igreja de Cosme e Damião,
no Rio de Janeiro, onde teve sua formação religiosa, ela nunca havia
posto em cheque seus próprios desejos.
Ao começar a namorar outra mulher, diminuíram suas visitas à
igreja, assim como os vínculos com a comunidade, que eram fortes até
este momento. Em janeiro de 2012, o então papa Bento XVI afirmou em
discurso que homossexuais eram uma ameaça ao futuro da humanidade.

Cristiana Serra e Juliana Luvizaro se conheceram na igreja e lá começaram a namorar
“Fiquei revoltada e mandei um e-mail para a Arquidiocese do
Rio de Janeiro. Recebi uma resposta extremamente amorosa e acolhedora
dos responsáveis, que me indicaram o grupo Diversidade Católica”, lembra
ela.
O grupo, fundado em 2007, reúne mensalmente LGBTs católicos
para trocar experiências e se conectar com a religiosidade afastada ou
mesmo perdida, e conta muitas vezes com celebrações realizadas por
padres. Foi lá que Juliana conheceu sua atual mulher, a
psicóloga Cristiana de Assis Serra , 39. “Brinco que se um dia a igreja
aceitar o casamento gay, o Bento XVI vai ser nosso padrinho, afinal, foi
ele que nos uniu.”
“Ninguém pergunta se alguém é hétero ou
gay, o que nos interessa é que a pessoa esteja ali e que seja acolhida
com todo o respeito, afeto e misericórdia (Padre Júlio Lancellotti)
Comum em outras comunidades, a acolhida que encontrou no
grupo foi um contraponto ao posicionamento que a igreja tem mostrado com
relação a temas como homossexualidade, aborto e eutanásia – uma é
ameaça à humanidade, as outras são assassinato.
Para o padre Júlio Lancellotti , da Paróquia São Miguel
Arcanjo, em São Paulo, não há nenhuma orientação da igreja de afastar ou
expulsar alguém por conta da sua orientação sexual. “Ninguém pergunta
se alguém é hétero ou gay, o que nos interessa é que a pessoa esteja ali
e que seja acolhida com todo o respeito, afeto e misericórdia”, afirma,
dizendo ainda que em sua comunidade a comunhão é dada a todos, sem
discriminação. “Temos inclusive um fiel que vai à missa de unhas
pintadas e maquiagem.”

Padre Julio Lancellotti: “Temos um fiel que vai à missa de unhas pintadas e maquiagem.”
CRISTÃ DE CORPO E ALMA
Para Juliana, o principal motivo para retornar à igreja é sua
completa ligação com a fé e com sua religião. “Assim como eu não posso
abrir mão de ser gay, não posso abrir mão de ser católica, isso sou eu”,
diz ela, que considera só ter alcançado a completude de sua fé quando
se assumiu como homossexual nas comunidades de que participa. “Para ser
cristão é preciso estar ali de corpo e alma, sem deixar nada de fora.”
“Assim como eu não posso abrir mão de ser gay, não posso abrir mão de ser católica (Juliana Luvizaro)
Cristiana, a parceira de Juliana, relata que sua história é
repleta de exceções. Se assumiu na adolescência, quando teve o apoio
completo dos pais, e teve sua formação católica no colégio de freiras e
não em família. “Estudei em colégio católico porque era o melhor na
época e, ao contrário de todo mundo que geralmente foge da religião, eu
me apeguei”, afirma ela, concedendo o mérito da questão às amorosas
freiras que administravam o colégio, que ela preferiu não identificar.
Porém, depois de assumir sua homossexualidade, Cristiana teve
problemas em seguir buscando conforto na igreja. “Quando me entendi gay
parei de comungar, sabia que era algo não aceitável no catolicismo, mas
foi muito difícil”, conta ela, que passou a questionar diversos padres
sobre a posição da religião católica nesta questão. Eles constantemente
afirmavam que sua sexualidade não seria aceita.
A busca por respostas só acabou quando realizou um retiro e
ouviu de um padre jesuíta espanhol a seguinte afirmação: “Todo amor gera
vida, pode ficar em paz”. E com essas palavras ela fez as pazes com a
religião, e em 2008 entrou no grupo Diversidade Católica.
“Quando me entendi gay parei de comungar,
sabia que era algo não aceitável no catolicismo, mas foi muito difícil
(Cristiana de Assis Serra)
“Foi a minha primeira experiência religiosa coletiva, em que o
ritual católico finalmente fez sentido. Quando fui à missa com um grupo
em que todo mundo sabia que eu era gay, senti um impacto tão grande que
percebi o quanto estava no armário e o quanto isso era uma amputação”,
conta ela.
“Entendi que o lugar mais sagrado é a nossa consciência, e
estou tranquila com a minha. Isso me faz estar bem com a minha fé e a
minha religião”.
Cristiana conta que hoje ela e Juliana frequentam duas
igrejas no Rio de Janeiro e são bem acolhidas como um casal, tanto pela
comunidade quanto pelos páracos. Entretanto, por conta do posicionamento
oficial da igreja, prefere não identificá-los.
A BUSCA PELO SENTIDO DA VIDA
Para o professor de teologia da PUC-SP Rafael Rodrigues da
Silva , o comportamento de Juliana e Cristiana é comum na sociedade.
“Todo ser humano tende a buscar formas de organizar a sua vida e a
religião tem papel fundamental nesse processo, seja de forma espiritual,
doutrinal ou moral, sem contar a busca pelo sentido da vida”, afirma
ele.

Pedro Borges conseguiu conciliar a vivência no catolicismo e a homossexualidade
Silva explica ainda que a religião é um processo de herança.
“As pessoas sabem da moral conservadora da igreja católica ou até da
evangélica, mas no fundo aquilo que está impregnado na sua formação é o
que vai fazer sentido. O indivíduo tem essa necessidade da detenção da
identidade, se sente pertencente, mas é mais uma questão de construção,
tem o aspecto da família, do convívio social”, conclui.
“As pessoas sabem da moral conservadora da
igreja católica ou até da evangélica, mas no fundo aquilo que está
impregnado na sua formação e é o que vai fazer sentido (Rafael Rodrigues
da Silva)
Para o estudante baiano Bruno , 20, a espiritualidade e a
relação com a igreja conflituam com a sua orientação sexual. Ele, que
prefere não revelar o sobrenome, nasceu em família católica e teve o
catolicismo em sua formação desde criança. Extremamente reservado, conta
que se assumiu apenas para poucos amigos e que espera a hora certa para
contar aos familiares e à comunidade da igreja, da qual participa
ativamente.
Bruno relata que entrou em crise quando a sua sexualidade se
definiu, mas que acredita nas mudanças da igreja. Para ele, o importante
é “viver na fé e esperar um mundo melhor,” e reforça a necessidade de
ter uma religião. Porém, se houver crítica do padre ou da igreja por sua
orientação sexual, não descarta se afastar. “Só devo para Deus e seu
filho Jesus Cristo, e com eles estou em paz” diz.
O DESEJO DE SER ACOLHIDO
Foi pensando nos fiéis angustiados que Roberto Francisco
Daniel, o então Padre Beto , decidiu debater sexualidade, o que
resultou em sua excomunhão da igreja católica em
abril deste ano: “Tenho na memória duas garotas que eram lésbicas e
queriam receber a benção oficial de sua união, lembro também de um
senhor de meia idade que teve filhos, casou buscando uma
heterossexualidade inexistente e se sentia no inferno. Quando ouvia
essas histórias pensava: É um desejo deles, por que condenar? Porque o
amor deles não pode ser algo pacífico e amado por Deus?”
“Porque o amor deles não pode ser algo pacífico e amado por Deus? (Roberto Francisco Daniel)
Padre Beto que afirma que a igreja não discute
homossexualidade, assim como não debate sexualidade como um todo, e
conta que desde que retornou da Alemanha, em 2001, tenta dialogar sobre
esses temas e não encontra praticamente ninguém disposto a fazer o
mesmo.
Sobre os gays que optam pela religião católica, ele reflete.
“Eles possuem uma fé profunda, são pessoas que sentem a presença de
Deus. Por outro lado, sua sexualidade fica no silêncio. Eles têm o
desejo de ser acolhidos”.

Padre Beto: “Lembro de um senhor de meia idade que teve
filhos, casou buscando uma heterossexualidade inexistente e se sentia no
inferno”
Um dos fieis que também passou pelo processo de aceitação e
conseguiu conciliar a vivência no catolicismo e a homossexualidade é o
professor Pedro Borges , 28. Criado na doutrina católica, conta que a
igreja foi sempre um espaço de convivência e formação de caráter, e que a
falta de debate na religião fez com que desenvolvesse um discurso
preconceituoso. Demorou a entender que poderia, sim, ser gay e católico.
“Sou gay e sou católico, estas não são
questões excludentes, mas socialmente o gay não me permite ser
religioso, e o religiosos não me deixa ser gay (Pedro Borges)
“Hoje tenho uma outra interpretação da sexualidade baseada
inclusive em leituras bíblicas”, conta o professor, que segue
trabalhando na paróquia apesar de ser discreto em relação à sua
orientação sexual. “É complicado, muitos idosos não entendem muito bem”,
afirma. Mas diz que debate constantemente para não permitir que os
discursos de sua adolescência continuem sendo reproduzidos. “Sou gay e
sou católico, estas não são questões excludentes, mas socialmente o gay
não me permite ser religioso, e o religiosos não me deixa ser gay. Isso
precisa mudar, porque não está escrito em lugar algum que uma coisa ou
outra é proibida.”
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